Consumidores em insegurança alimentar agravada pela Covid 19 recebem alimentos agroecológicos no Sul do Brasil

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Consumidores em insegurança alimentar agravada pela Covid 19 recebem alimentos agroecológicos no Sul do Brasil

Considerada uma das mais letais pandemias já enfrentadas pela humanidade, a Covid 19 foi responsável por ceifar a vida de aproximadamente 7 milhões de pessoas em todo o planeta, sendo 700 mil somente no Brasil. Como agravante da expressiva mortalidade causada pela doença, a pandemia teve ainda por consequência uma recessão econômica global de enormes proporções, gerando muitos contingentes populacionais ameaçados pela insegurança alimentar. Em virtude da histórica desigualdade social brasileira, a crise potencializada no país levou a taxas recordes de desemprego, explosão da inflação e queda abrupta da renda, principalmente nas classes menos favorecidas.

A mazela social da fome foi combatida não somente com ações emergenciais implementadas pelas esferas públicas, mas também por inúmeras iniciativas da sociedade civil capilarizadas por todo o território nacional. Na região Sul, as organizações AS-PTA, Cepagro, Cetap e Centro Vianei, integrantes do projeto Consumidores e Agricultores em Rede, apoiado pela Misereor, direcionaram desde o início da pandemia recursos e atividades que contribuíram para mitigar os seus efeitos devastadores. Focadas em abastecimento solidário, as ações destacaram-se por possibilitar o acesso de populações vulneráveis a alimentos de qualidade, fomentando ao mesmo tempo o escoamento da produção de agricultores familiares, também bastante impactados pela pandemia.

Essas práticas tiveram por princípio não atender apenas a uma demanda pontual de maneira assistencialista, mas fomentar a autonomia dos processos e públicos envolvidos, gerando fluxos contínuos de ações de segurança alimentar e nutricional. Foram realizados cursos e formações em educação popular abordando questões de abastecimento em suas variadas dimensões, além de ações de incidência para consolidar políticas públicas que permeiam a questão, como a pressão popular para o Estado financiar as cozinhas comunitárias e outras iniciativas que se multiplicaram no período pandêmico para atender às populações periféricas.

Horta urbana na Cooperativa Recibela (Passo Fundo/RS) para complementar refeições preparadas na cozinha

Cada organização, por sua vez, foi responsável por mobilizar diversos atores em seus territórios com o objetivo de fortalecer as ações e ampliar os vínculos entre as cadeias de abastecimento solidário. Na região do Planalto Serrano Catarinense, o Centro Vianei de Educação Popular contou com a parceria de 12 entidades ligadas às Pastorais Sociais e à Caritas Diocesana de Lages. Com sua experiência na operacionalização de programas públicos de abastecimento e relações de trabalho cotidianas com a Cooperativa Ecoserra, a entidade realizou as ações de abastecimento e distribuição de alimentos entre os meses de outubro e dezembro de 2021 e no mês de março de 2022.

As doações foram encaminhadas através de duas destinações distintas. Na primeira, um total de 1.182 cestas, cada uma contendo uma média de 12 quilos de alimentos da agricultura familiar agroecológica, foram entregues para famílias em situação de vulnerabilidade nos municípios de Lages, Curitibanos e Cerro Negro. A partir de uma triagem organizada pela coordenação das Pastorais Sociais e pela presidência da Caritas Diocesana de Lages e região, em conjunto com o Centro Vianei, os alimentos foram recebidos principalmente por núcleos familiares chefiados por mulheres com perfil no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico). Além de serem mulheres na maioria mantenedoras de seus lares, grande parte delas enfrentam situações como serem mães solo, terem os maridos encarcerados ou acometidos por dependência química. Articuladas com a ação, foram realizadas 4 oficinas formativas de aproveitamento de alimentos, acessadas por mulheres beneficiárias da iniciativa.  

Na segunda forma de destinação, a Pastoral da População de Rua de Lages foi beneficiada com alimentos para preparo de refeições para população em situação de rua. As refeições são confeccionadas na cozinha da Caritas Diocesana de Lages, em conjunto com o Coletivo Rede Rua, que vem preparando e distribuindo refeições aos domingos e feriados, quando a Prefeitura Municipal de Lages não disponibiliza alimentação à população de rua através de seus equipamentos públicos. Somadas as duas fases de abastecimento, um total de 15,9 toneladas de alimentos 100% agroecológicos foram doadas por estas iniciativas de abastecimento solidário, compostos por alface, arroz, banana, batata-doce, batata-inglesa, beterraba, brócolis, cenoura, couve, feijão, repolho, laranja, maçã e tempero verde. “Essas ações permitiram não somente aliviar a fome, a fragilidade e a vulnerabilidade das pessoas atendidas, como também contribuiu com o fortalecimento da nossa rede de solidariedade. Seguimos produzindo 100 marmitas nos domingos e feriados, dias em que a prefeitura não fornece alimentação para a população de rua”, avalia Domingos Pereira Rodrigues, presidente da Cáritas Diocesana de Lages.

No território do Litoral Catarinense, as ações de mitigação da Covid 19 realizadas pelo Cepagro (Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo) contam com alimentos agroecológicos de origem rural e urbana. Com foco em complementar o abastecimento de 6 cozinhas comunitárias que surgiram ou se fortaleceram durante a pandemia, a iniciativa em curso desde 2020 realizou compras junto a famílias agricultoras da Rede Ecovida, do assentamento da reforma agrária Comuna Amarildo de Souza, de cooperativas do MST e da Agricultura Familiar e de comunidades indígenas em territórios reconhecidos da Grande Florianópolis.

Com o objetivo de fortalecer as Redes de Segurança Alimentar e Nutricional, as ações foram planejadas em uma seqüencia logística passando pelo mapeamento da oferta e demanda por alimentos, planejamento de produção com as famílias agricultoras, contato com cooperativas de agricultores, entrega dos alimentos às cozinhas comunitárias, preparo e distribuição das refeições. Além de assentados e assentadas da reforma agrária, foram priorizadas as compras de mulheres e de jovens agricultores, promovendo a produção local de alimentos limpos e os circuitos curtos de comercialização. 

O protagonismo de comunidades indígenas guaranis, que historicamente ocupam territórios no litoral catarinense, foi um dos diferenciais neste arranjo de abastecimento solidário. Na condição de beneficiários, foram recebidos alimentos por aldeias dos municípios de Biguaçu e Major Gercino, além de usuários da Casa de Passagem Indígena e da Moradia Estudantil Indígena na capital catarinense. Os indígenas, porém, também atuaram como produtores na cadeia solidária. Foi o caso da comunidade guarani Tekoá Vy’á, responsável por produzir e fornecer cerca de 200 kg de batata doce, 150 kg de banana e 260 kg de feijão agroecológicos para as cozinhas comunitárias. Assessorados pelo Cepagro desde o planejamento da produção, os moradores da comunidade Tekoá frutificaram em seu solo mudas e sementes conservadas pela agricultura familiar e movimentos sociais, gerando segurança alimentar para eles próprios além de excedentes para comercialização, algo inédito naquele território.

O abastecimento solidário no Litoral Catarinense forneceu alimentos para a complementação das refeições na Cozinha Solidária Rio Vermelho, Cozinha Solidária Ribeirão da Ilha, Cozinha Dona Hilda (Vila Aparecida), Cozinha Mãe (Bairro Monte Cristo), Cozinha do Templo Hare Krishna e Cozinha do Migrante (Bairro Capoeiras), espalhadas pelas regiões insular e continental de Florianópolis. Ao todo foram 22 variedades de alimentos, entre folhosas, temperos, grãos, frutas, raízes, hortaliças, bulbos, tubérculos, farinhas, ovos e leite. Estendendo-se pelo ano de 2022 e atualmente ainda em vigência, a iniciativa estima atingir 40 toneladas de alimentos agroecológicos distribuídos.

Em composição com a ação de abastecimento, foram realizadas formações cidadãs em Segurança Alimentar e Nutricional com as cozinhas comunitárias, propiciando debates sobre estes espaços como garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável, além de fortalecer a incidência junto ao poder público para acesso a recursos e estrutura. “Diante do abandono pela gestão pública, essas ações conseguiram chegar diretamente em quem precisa. Com o fortalecimento desses espaços fortalecemos nossa base, porque temos relação direta com os moradores e suas famílias”, explica Cíntia Cruz, coordenadora da Cozinha Mãe (Bairro Monte Cristo).

A manutenção das cozinhas também provocou impacto na demanda por políticas públicas, conforme destaca Eduardo Rocha, coordenador do Cepagro e membro do Conselho Municipal e do Fórum Catarinense de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FCSSAN): “o movimento das cozinhas comunitárias permitiu mostrar que apenas um Restaurante Popular centralizado não é suficiente. Agora nossa luta é buscar a formalização desses espaços, discutir a importância do financiamento público para ações da sociedade civil e tê-los como parte integrante dos equipamentos públicos de Segurança Alimentar e Nutricional.” Com aproximadamente 100 mil pessoas em situação de baixa renda, a capital catarinense teve seu primeiro Restaurante Popular inaugurado apenas em julho de 2022, após uma década de pressão pelo Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (COMSEAS) e movimentos sociais.

Cooperativa de Reciclagem Recibela – Passo Fundo/RS

Na região Planalto Médio do Rio Grande do Sul, o abastecimento solidário realizado pelo Cetap (Centro de Tecnologias Alternativas Populares) apresenta o diferencial de contribuir com a cadeia de reciclagem de resíduos sólidos em Passo Fundo, município mais populoso do norte do estado, com aproximadamente 206 mil habitantes. Atendendo a uma demanda da Cooperativa de Trabalho dos Recicladores do Parque Bela Vista – Recibela, o Cetap executa compras de alimentos junto a associações e cooperativas de agricultura familiar, ou diretamente com famílias agricultoras, para compor o cardápio de 2 refeições diárias preparadas na própria cooperativa e servidas aos 80 trabalhadores da reciclagem que atualmente compõem seus quadros.

Criada em 2014, a cozinha comunitária da Recibela inicialmente teve pouco fôlego para manter-se em funcionamento, fechando logo em seguida devido à falta de recursos para compra de alimentos. Em 2020, uma nova tentativa de abertura foi executada, porém também frustrada com a chegada da pandemia. Uma campanha de doação de alimentos organizada por escolas de Passo Fundo reacendeu as chamas do projeto em meados de 2021. Somando-se aos esforços para garantir a continuidade da cozinha, desde então o Cetap intercedeu junto à iniciativa com sua estratégia de abastecimento solidário, que mantém-se ativa ao longo deste ano de 2023.

Catarina da Rosa é presidente da Cooperativa de Reciclagem Recibela (Passo Fundo/RS)

Catarina da Rosa, trabalhadora da reciclagem e presidente da Cooperativa Recibela, explica a importância deste equipamento de segurança alimentar no bem estar dos trabalhadores e fortalecimento dos serviços ambientais que prestam ao município: “antes da pandemia, tínhamos uma média de 30 pessoas no trabalho. A questão da alimentação sempre foi um problema, alguns comiam comida gelada ou corriam o risco de azedar a marmita, outros nem tinham condições de trazer alimentos. Com a manutenção da cozinha comunitária, conseguimos reunir 80 trabalhadores, fornecendo a eles café da manhã e almoço. Eles trabalham felizes, mais fortes e até conseguiram aumentar a renda”, explica ela. “Cerca de 230 pessoas dependem desta renda gerada aqui. Agora precisamos melhorar a infraestrutura da cozinha, para atrair mais trabalhadores. Queremos chegar a 100 pessoas na triagem dos resíduos sólidos”, complementa Catarina.

Refeições servidas aos trabalhadores e trabalhadoras no refeitório da Cooperativa Recibela – Passo Fundo/RS

A ação resultou ainda no engajamento dos associados da Recibela para organizar uma horta comunitária no entorno do pavilhão de reciclagem. Os trabalhos de planejamento, preparação do solo, montagem dos canteiros e início da produção foram facilitados pelos técnicos do Cetap, em um processo educativo envolvendo os recicladores e as cozinheiras que preparam as refeições diariamente. No primeiro momento, os espaços foram preparados para o plantio de hortaliças, tubérculos e grãos, utilizados para enriquecer o cardápio da cozinha comunitária. Simultaneamente, ocorreu a introdução de mudas frutíferas visando a composição de um sistema agroflorestal, além da construção de uma composteira que expande a reciclagem para os resíduos orgânicos e possibilita a geração de adubo para os cultivos.

Outra ação de abastecimento solidário executada pelo Cetap foi o aporte de alimentos para famílias em situação de vulnerabilidade. Entre 2020 e 2022, um total de 2.045 cestas foram distribuídas em parceria com as Cáritas Diocesanas de Vacaria e Passo Fundo, grupos de recicladores de Passo Fundo e de Erechim, grupos de famílias urbanas articuladas pelo MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) de Erechim e Centros de Referência de Assistência Social dos Municípios de Aratiba, Três Arroios, Itatiba do Sul, Barrão de Cotegipe, Vacaria e Sananduva. Cada cesta continha arroz, feijão, cebola, batata doce, aipim, legumes, moranga, farinha de trigo integral e frutas da época. Para composição destes itens, todos de origem agroecológica, foram movimentadas 42.9 toneladas de alimentos produzidos por mais de 300 famílias agricultoras ecologistas.

Cestas de alimentos orgânicos distribuídos pelo CETAP na ação de enfrentamento da fome no período intenso da Pandemia da Covid-19

Nas regiões centro-sul e sul do Paraná, as iniciativas de abastecimento solidário foram conduzidas pela AS-PTA Agricultura e Agroecologia. Na dinâmica das compras para doação às cozinhas comunitárias, houve um estreitamento de laços entre cooperativas da agricultura familiar do território, dinamizando parcerias e circuitos curtos de comercialização. O atendimento emergencial aos efeitos da Covid 19 resultou em um programa contínuo assumido pela entidade, que articulou recursos de outros parceiros institucionais, como a Fundação Banco do Brasil, para dar suporte às ações.

No município de Palmeira, a ação articulada junto ao grupo Renascer da Igreja Menonita possibilitou o atendimento à crianças em situação de vulnerabilidade. Com alimentos adquiridos da Cafpal (Cooperativa de Agricultura Familiar de Palmeira), a doação semanal resulta em 200 marmitas produzidas e distribuídas pela cozinha comunitária tocada pelo coletivo. Uma ação semelhante ocorre no município de São Mateus do Sul, onde a parceria com a Cáritas municipal e as compras de alimentos da Cofaeco (Cooperativa de Famílias de Agricultores Ecológicos) resultam no preparo e entrega de 40 marmitas semanais.

Uma frente de distribuição de cestas agroecológicas esteve presente em 5 municípios da região. Nesta rota solidária, 800 famílias das áreas rurais e urbanas de Palmeira, Rebouças, São Mateus do Sul, São João do Triunfo e Rio Azul foram beneficiadas com as cestas. As famílias foram triadas a partir do diálogo com o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), vinculado ao Sistema Unificado de Assistência Social (SUAS). A estratégia de fornecimento, com grande diversidade de alimentos, foi organizada pelo Coletivo Triunfo, que mobilizou cerca de 100 famílias agricultoras para o abastecimento no território. Somados todos os apoios recebidos pela AS-PTA, a organização foi responsável por distribuir 5708 cestas e 97 toneladas de alimentos. Além da Cafpal e da Cofaeco, a iniciativa contou com a parceria da Coaftril (Cooperativa Mista Triunfense de Agricultoras e Agricultores Familiares), Comdaf (Cooperativa Mista de Diversificação da Agricultura Familiar de Rio Azul e Comdafar (Cooperativa Mista de Desenvolvimento da Agricultura Familiar de Rebouças), que compõem o Coletivo Triunfo.

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* Por Fernando Angeoletto
Jornalista do projeto Consumidores e Agricultores em Rede/Misereor


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