
Considerada uma das mais letais pandemias já enfrentadas pela humanidade, a Covid 19 foi responsável por ceifar a vida de aproximadamente 7 milhões de pessoas em todo o planeta, sendo 700 mil somente no Brasil. Como agravante da expressiva mortalidade causada pela doença, a pandemia teve ainda por consequência uma recessão econômica global de enormes proporções, gerando muitos contingentes populacionais ameaçados pela insegurança alimentar. Em virtude da histórica desigualdade social brasileira, a crise potencializada no país levou a taxas recordes de desemprego, explosão da inflação e queda abrupta da renda, principalmente nas classes menos favorecidas.
A mazela social da fome foi combatida não somente com ações emergenciais implementadas pelas esferas públicas, mas também por inúmeras iniciativas da sociedade civil capilarizadas por todo o território nacional. Na região Sul, as organizações AS-PTA, Cepagro, Cetap e Centro Vianei, integrantes do projeto Consumidores e Agricultores em Rede, apoiado pela Misereor, direcionaram desde o início da pandemia recursos e atividades que contribuíram para mitigar os seus efeitos devastadores. Focadas em abastecimento solidário, as ações destacaram-se por possibilitar o acesso de populações vulneráveis a alimentos de qualidade, fomentando ao mesmo tempo o escoamento da produção de agricultores familiares, também bastante impactados pela pandemia.
Essas práticas tiveram por princípio não atender apenas a uma demanda pontual de maneira assistencialista, mas fomentar a autonomia dos processos e públicos envolvidos, gerando fluxos contínuos de ações de segurança alimentar e nutricional. Foram realizados cursos e formações em educação popular abordando questões de abastecimento em suas variadas dimensões, além de ações de incidência para consolidar políticas públicas que permeiam a questão, como a pressão popular para o Estado financiar as cozinhas comunitárias e outras iniciativas que se multiplicaram no período pandêmico para atender às populações periféricas.
Cada organização, por sua vez, foi responsável por mobilizar diversos atores em seus territórios com o objetivo de fortalecer as ações e ampliar os vínculos entre as cadeias de abastecimento solidário. Na região do Planalto Serrano Catarinense, o Centro Vianei de Educação Popular contou com a parceria de 12 entidades ligadas às Pastorais Sociais e à Caritas Diocesana de Lages. Com sua experiência na operacionalização de programas públicos de abastecimento e relações de trabalho cotidianas com a Cooperativa Ecoserra, a entidade realizou as ações de abastecimento e distribuição de alimentos entre os meses de outubro e dezembro de 2021 e no mês de março de 2022.
As doações foram encaminhadas através de duas destinações distintas. Na primeira, um total de 1.182 cestas, cada uma contendo uma média de 12 quilos de alimentos da agricultura familiar agroecológica, foram entregues para famílias em situação de vulnerabilidade nos municípios de Lages, Curitibanos e Cerro Negro. A partir de uma triagem organizada pela coordenação das Pastorais Sociais e pela presidência da Caritas Diocesana de Lages e região, em conjunto com o Centro Vianei, os alimentos foram recebidos principalmente por núcleos familiares chefiados por mulheres com perfil no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico). Além de serem mulheres na maioria mantenedoras de seus lares, grande parte delas enfrentam situações como serem mães solo, terem os maridos encarcerados ou acometidos por dependência química. Articuladas com a ação, foram realizadas 4 oficinas formativas de aproveitamento de alimentos, acessadas por mulheres beneficiárias da iniciativa.
Na segunda forma de destinação, a Pastoral da População de Rua de Lages foi beneficiada com alimentos para preparo de refeições para população em situação de rua. As refeições são confeccionadas na cozinha da Caritas Diocesana de Lages, em conjunto com o Coletivo Rede Rua, que vem preparando e distribuindo refeições aos domingos e feriados, quando a Prefeitura Municipal de Lages não disponibiliza alimentação à população de rua através de seus equipamentos públicos. Somadas as duas fases de abastecimento, um total de 15,9 toneladas de alimentos 100% agroecológicos foram doadas por estas iniciativas de abastecimento solidário, compostos por alface, arroz, banana, batata-doce, batata-inglesa, beterraba, brócolis, cenoura, couve, feijão, repolho, laranja, maçã e tempero verde. “Essas ações permitiram não somente aliviar a fome, a fragilidade e a vulnerabilidade das pessoas atendidas, como também contribuiu com o fortalecimento da nossa rede de solidariedade. Seguimos produzindo 100 marmitas nos domingos e feriados, dias em que a prefeitura não fornece alimentação para a população de rua”, avalia Domingos Pereira Rodrigues, presidente da Cáritas Diocesana de Lages.
No território do Litoral Catarinense, as ações de mitigação da Covid 19 realizadas pelo Cepagro (Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo) contam com alimentos agroecológicos de origem rural e urbana. Com foco em complementar o abastecimento de 6 cozinhas comunitárias que surgiram ou se fortaleceram durante a pandemia, a iniciativa em curso desde 2020 realizou compras junto a famílias agricultoras da Rede Ecovida, do assentamento da reforma agrária Comuna Amarildo de Souza, de cooperativas do MST e da Agricultura Familiar e de comunidades indígenas em territórios reconhecidos da Grande Florianópolis.
Com o objetivo de fortalecer as Redes de Segurança Alimentar e Nutricional, as ações foram planejadas em uma seqüencia logística passando pelo mapeamento da oferta e demanda por alimentos, planejamento de produção com as famílias agricultoras, contato com cooperativas de agricultores, entrega dos alimentos às cozinhas comunitárias, preparo e distribuição das refeições. Além de assentados e assentadas da reforma agrária, foram priorizadas as compras de mulheres e de jovens agricultores, promovendo a produção local de alimentos limpos e os circuitos curtos de comercialização.
O protagonismo de comunidades indígenas guaranis, que historicamente ocupam territórios no litoral catarinense, foi um dos diferenciais neste arranjo de abastecimento solidário. Na condição de beneficiários, foram recebidos alimentos por aldeias dos municípios de Biguaçu e Major Gercino, além de usuários da Casa de Passagem Indígena e da Moradia Estudantil Indígena na capital catarinense. Os indígenas, porém, também atuaram como produtores na cadeia solidária. Foi o caso da comunidade guarani Tekoá Vy’á, responsável por produzir e fornecer cerca de 200 kg de batata doce, 150 kg de banana e 260 kg de feijão agroecológicos para as cozinhas comunitárias. Assessorados pelo Cepagro desde o planejamento da produção, os moradores da comunidade Tekoá frutificaram em seu solo mudas e sementes conservadas pela agricultura familiar e movimentos sociais, gerando segurança alimentar para eles próprios além de excedentes para comercialização, algo inédito naquele território.
O abastecimento solidário no Litoral Catarinense forneceu alimentos para a complementação das refeições na Cozinha Solidária Rio Vermelho, Cozinha Solidária Ribeirão da Ilha, Cozinha Dona Hilda (Vila Aparecida), Cozinha Mãe (Bairro Monte Cristo), Cozinha do Templo Hare Krishna e Cozinha do Migrante (Bairro Capoeiras), espalhadas pelas regiões insular e continental de Florianópolis. Ao todo foram 22 variedades de alimentos, entre folhosas, temperos, grãos, frutas, raízes, hortaliças, bulbos, tubérculos, farinhas, ovos e leite. Estendendo-se pelo ano de 2022 e atualmente ainda em vigência, a iniciativa estima atingir 40 toneladas de alimentos agroecológicos distribuídos.
Em composição com a ação de abastecimento, foram realizadas formações cidadãs em Segurança Alimentar e Nutricional com as cozinhas comunitárias, propiciando debates sobre estes espaços como garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável, além de fortalecer a incidência junto ao poder público para acesso a recursos e estrutura. “Diante do abandono pela gestão pública, essas ações conseguiram chegar diretamente em quem precisa. Com o fortalecimento desses espaços fortalecemos nossa base, porque temos relação direta com os moradores e suas famílias”, explica Cíntia Cruz, coordenadora da Cozinha Mãe (Bairro Monte Cristo).
A manutenção das cozinhas também provocou impacto na demanda por políticas públicas, conforme destaca Eduardo Rocha, coordenador do Cepagro e membro do Conselho Municipal e do Fórum Catarinense de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FCSSAN): “o movimento das cozinhas comunitárias permitiu mostrar que apenas um Restaurante Popular centralizado não é suficiente. Agora nossa luta é buscar a formalização desses espaços, discutir a importância do financiamento público para ações da sociedade civil e tê-los como parte integrante dos equipamentos públicos de Segurança Alimentar e Nutricional.” Com aproximadamente 100 mil pessoas em situação de baixa renda, a capital catarinense teve seu primeiro Restaurante Popular inaugurado apenas em julho de 2022, após uma década de pressão pelo Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (COMSEAS) e movimentos sociais.
Na região Planalto Médio do Rio Grande do Sul, o abastecimento solidário realizado pelo Cetap (Centro de Tecnologias Alternativas Populares) apresenta o diferencial de contribuir com a cadeia de reciclagem de resíduos sólidos em Passo Fundo, município mais populoso do norte do estado, com aproximadamente 206 mil habitantes. Atendendo a uma demanda da Cooperativa de Trabalho dos Recicladores do Parque Bela Vista – Recibela, o Cetap executa compras de alimentos junto a associações e cooperativas de agricultura familiar, ou diretamente com famílias agricultoras, para compor o cardápio de 2 refeições diárias preparadas na própria cooperativa e servidas aos 80 trabalhadores da reciclagem que atualmente compõem seus quadros.
Criada em 2014, a cozinha comunitária da Recibela inicialmente teve pouco fôlego para manter-se em funcionamento, fechando logo em seguida devido à falta de recursos para compra de alimentos. Em 2020, uma nova tentativa de abertura foi executada, porém também frustrada com a chegada da pandemia. Uma campanha de doação de alimentos organizada por escolas de Passo Fundo reacendeu as chamas do projeto em meados de 2021. Somando-se aos esforços para garantir a continuidade da cozinha, desde então o Cetap intercedeu junto à iniciativa com sua estratégia de abastecimento solidário, que mantém-se ativa ao longo deste ano de 2023.
Catarina da Rosa, trabalhadora da reciclagem e presidente da Cooperativa Recibela, explica a importância deste equipamento de segurança alimentar no bem estar dos trabalhadores e fortalecimento dos serviços ambientais que prestam ao município: “antes da pandemia, tínhamos uma média de 30 pessoas no trabalho. A questão da alimentação sempre foi um problema, alguns comiam comida gelada ou corriam o risco de azedar a marmita, outros nem tinham condições de trazer alimentos. Com a manutenção da cozinha comunitária, conseguimos reunir 80 trabalhadores, fornecendo a eles café da manhã e almoço. Eles trabalham felizes, mais fortes e até conseguiram aumentar a renda”, explica ela. “Cerca de 230 pessoas dependem desta renda gerada aqui. Agora precisamos melhorar a infraestrutura da cozinha, para atrair mais trabalhadores. Queremos chegar a 100 pessoas na triagem dos resíduos sólidos”, complementa Catarina.
A ação resultou ainda no engajamento dos associados da Recibela para organizar uma horta comunitária no entorno do pavilhão de reciclagem. Os trabalhos de planejamento, preparação do solo, montagem dos canteiros e início da produção foram facilitados pelos técnicos do Cetap, em um processo educativo envolvendo os recicladores e as cozinheiras que preparam as refeições diariamente. No primeiro momento, os espaços foram preparados para o plantio de hortaliças, tubérculos e grãos, utilizados para enriquecer o cardápio da cozinha comunitária. Simultaneamente, ocorreu a introdução de mudas frutíferas visando a composição de um sistema agroflorestal, além da construção de uma composteira que expande a reciclagem para os resíduos orgânicos e possibilita a geração de adubo para os cultivos.
Outra ação de abastecimento solidário executada pelo Cetap foi o aporte de alimentos para famílias em situação de vulnerabilidade. Entre 2020 e 2022, um total de 2.045 cestas foram distribuídas em parceria com as Cáritas Diocesanas de Vacaria e Passo Fundo, grupos de recicladores de Passo Fundo e de Erechim, grupos de famílias urbanas articuladas pelo MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) de Erechim e Centros de Referência de Assistência Social dos Municípios de Aratiba, Três Arroios, Itatiba do Sul, Barrão de Cotegipe, Vacaria e Sananduva. Cada cesta continha arroz, feijão, cebola, batata doce, aipim, legumes, moranga, farinha de trigo integral e frutas da época. Para composição destes itens, todos de origem agroecológica, foram movimentadas 42.9 toneladas de alimentos produzidos por mais de 300 famílias agricultoras ecologistas.
Nas regiões centro-sul e sul do Paraná, as iniciativas de abastecimento solidário foram conduzidas pela AS-PTA Agricultura e Agroecologia. Na dinâmica das compras para doação às cozinhas comunitárias, houve um estreitamento de laços entre cooperativas da agricultura familiar do território, dinamizando parcerias e circuitos curtos de comercialização. O atendimento emergencial aos efeitos da Covid 19 resultou em um programa contínuo assumido pela entidade, que articulou recursos de outros parceiros institucionais, como a Fundação Banco do Brasil, para dar suporte às ações.
No município de Palmeira, a ação articulada junto ao grupo Renascer da Igreja Menonita possibilitou o atendimento à crianças em situação de vulnerabilidade. Com alimentos adquiridos da Cafpal (Cooperativa de Agricultura Familiar de Palmeira), a doação semanal resulta em 200 marmitas produzidas e distribuídas pela cozinha comunitária tocada pelo coletivo. Uma ação semelhante ocorre no município de São Mateus do Sul, onde a parceria com a Cáritas municipal e as compras de alimentos da Cofaeco (Cooperativa de Famílias de Agricultores Ecológicos) resultam no preparo e entrega de 40 marmitas semanais.
Uma frente de distribuição de cestas agroecológicas esteve presente em 5 municípios da região. Nesta rota solidária, 800 famílias das áreas rurais e urbanas de Palmeira, Rebouças, São Mateus do Sul, São João do Triunfo e Rio Azul foram beneficiadas com as cestas. As famílias foram triadas a partir do diálogo com o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), vinculado ao Sistema Unificado de Assistência Social (SUAS). A estratégia de fornecimento, com grande diversidade de alimentos, foi organizada pelo Coletivo Triunfo, que mobilizou cerca de 100 famílias agricultoras para o abastecimento no território. Somados todos os apoios recebidos pela AS-PTA, a organização foi responsável por distribuir 5708 cestas e 97 toneladas de alimentos. Além da Cafpal e da Cofaeco, a iniciativa contou com a parceria da Coaftril (Cooperativa Mista Triunfense de Agricultoras e Agricultores Familiares), Comdaf (Cooperativa Mista de Diversificação da Agricultura Familiar de Rio Azul e Comdafar (Cooperativa Mista de Desenvolvimento da Agricultura Familiar de Rebouças), que compõem o Coletivo Triunfo.
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* Por Fernando Angeoletto
Jornalista do projeto Consumidores e Agricultores em Rede/Misereor
Foi com esta questão norteadora que as 4 organizações do projeto Consumidores e Agricultores em Rede reuniram-se de 13 a 15/02 no município de Palmeira (PR). O debate sobre o tema foi aprofundado através de uma oficina ministrada por Luiz Kohara, assessor metodológico do CAIS – Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais.
Com larga experiência no acompanhamento de organizações sociais por todo o Brasil, Kohara explica que as ações de um projeto devem produzir indicadores a partir de seus efeitos, ou seja, das mudanças reais que produzem na vida das pessoas e que possam ser aferidas de maneira concreta. “O coração de um projeto social é o monitoramento orientado aos seus efeitos, através de um ciclo coletivo e permanente”, enfatiza Kohara.
Na oficina, os técnicos presentes realizaram exercícios orientados pela metodologia PMA (Planejamento, Monitoramento e Avaliação), para traçar os indicadores que apresentem o panorama de um ano da execução da atual edição deste projeto em Rede. Tal prática reforçou a importância da realização do Monitoramento, cujos resultados contribuem para observar, registrar, analisar e refletir sobre as mudanças percebidas no decurso do projeto, além de documentar e produzir aprendizados com base nas atividades realizadas.
No encontro presencial foram também articuladas as ações do projeto para o próximo período. Além das discussões sobre as dinâmicas solidárias de abastecimento com alimentos agroecológicos, foram traçadas as tarefas para realização do 2o. Seminário Internacional Alimentos Saudáveis – Redes Agroecológicas de Produção/Consumo, que acontece em Florianópolis (SC) nos dias 25 e 26/04, e a participação integrada no XII Encontro Ampliado da Rede Ecovida de Agroecologia, previsto para 14 a 16/07 em Maringá (PR).
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* Assessoria de Comunicação do Projeto Consumidores e Agricultores em Rede
Essa foi uma das constatações do levantamento realizado com 113 famílias agricultoras do Brasil, Paraguai, Equador, El Salvador e México através do projeto piloto Agroecologia na América Latina: construindo caminhos, que tem como objetivo demonstrar, através de indicadores, o que a Agroecologia representa em termos ambientais, sociais e econômicos. Desenvolvida por oito organizações dos cinco países, esta iniciativa envolve agricultores/as familiares que encontram-se em diferentes níveis de transição agroecológica. Além de responder a questionários qualitativos, estas famílias vêm registrando informações sobre cultivos, colheitas e gestão de suas propriedades na plataforma digital LiteFarm.
A relação produção-consumo é um dos aspectos que se busca compreender melhor a partir destes indicadores agroecológicos. Com base nas informações colhidas nos dois primeiros anos de projeto, identificou-se que o principal canal para comercialização de alimentos agroecológicos são as feiras, sendo utilizado por 64 das 113 famílias acompanhadas, seguido da entrega de cestas agroecológicas, adotado por 41 famílias.
Consideradas inovações sociais nos mercados de proximidade, as iniciativas de cestas agroecológicas trazem alguns benefícios em relação às feiras, por haver uma diminuição dos riscos de perdas e do tempo disponibilizado para a venda. Um modelo de comercialização das cestas é a Célula de Consumidores Responsáveis (CCR), tecnologia social desenvolvida no Laboratório de Comercialização da Agricultura Familiar da Universidade Federal de Santa Catarina (LACAF/UFSC) e adotada especialmente por famílias de Santa Catarina.
As CCR se estabelecem a partir da articulação entre grupos de agricultores e grupos de consumidores em uma relação direta e se caracterizam pela comercialização de cestas “fechadas” de alimentos orgânicos/agroecológicos de acordo com a sazonalidade. Os pedidos e pagamentos são realizados de forma antecipada, o que permite aos agricultores a garantia da venda, pois “só se colhe o que está vendido”. A entrega é realizada geralmente em pontos fixos comuns aos consumidores – como universidades, escolas, locais de trabalho, etc.
É assim que cinco famílias de Major Gercino-SC, ligadas ao Núcleo Litoral Catarinense da Rede Ecovida, comercializam juntas sua produção. O grupo abastece atualmente cerca de 85 famílias consumidoras de Florianópolis, organizadas em 4 células de consumo. As cestas são compostas por folhosas, algum tempero, legumes, tubérculos e frutas, variando com a diversidade de alimentos da época. Além disso, toda semana são disponibilizados alguns produtos extras através de uma lista enviada aos consumidores pelo whatsapp, principal canal de comunicação.
João Augusto Batisti, jovem agricultor responsável pela logística de montagem e entrega das cestas junto com o pai, conta que as CCR são uma garantia de remuneração mais justa. “As cestas ajudam muito a gente. Eu acredito que se não fossem as cestas, a nossa venda seria bem menor. Ou até poderia ter venda, mas o preço seria mais baixo para todos os produtores do grupo. Ela é uma vantagem para todo mundo aqui”, conta. Ainda assim, o grupo cogita começar a fazer uma feira em 2023. Isso porque desde o início da pandemia houve uma queda no volume de cestas vendidas semanalmente, especialmente na célula situada na universidade federal, onde a partir da suspensão das aulas o volume de consumidores caiu pela metade e não aumentou mesmo com o retorno das aulas. O aumento das vendas representaria uma redução do custo da logística de entrega, especialmente com combustível.
A célula abastecida pelo grupo de Major Gercino é uma dentre outras 13 células que operam em Santa Catarina. São mais de 45 famílias agricultoras envolvidas na tecnologia social, todas certificadas pela rede Ecovida de Agroecologia. Juntas distribuem semanalmente 530 cestas, totalizando cerca de 17 toneladas de alimentos, que são produzidos a uma distância média aproximada de 150 km de Florianópolis, onde são entregues.
Já no Paraguai, a articulação entre produtores orgânicos e consumidores é feita pela Associação Paraguai Orgánico (APRO), uma das 8 organizações que compõem o Comitê Gestor do projeto piloto. A APRO nasceu com o propósito de buscar canais de comercialização favoráveis para seus associados, que atualmente somam 250 famílias. Para ajudar nesse processo, desenvolveram a plataforma EcoAgro. É por ali, mas também através do WhatsApp e e-mail que os/as consumidores/as encomendam as cestas semanalmente.
Diferentemente do modelo das CCR, na dinâmica proposta pela APRO os consumidores escolhem a composição de suas cestas a partir de uma lista de produtos disponibilizada a elas. Na lista estão desde produtos in natura, como frutas, hortaliças, folhosas e temperos, até produtos com algum nível de processamento, como farinhas, azeites, sucos, mas também produtos cosméticos, como sabonetes. Feita a encomenda, a APRO se encarrega de recolher os produtos junto aos produtores e entregá-los de porta em porta aos consumidores.
O Coordenador da APRO, Genaro Ferreira, explica que “os benefícios que os produtores recebem com isso são a de um mercado seguro, preços justos e logística grátis”. Genaro comenta ainda que o volume de cestas comercializadas praticamente duplicou desde o começo da pandemia, sendo comercializadas atualmente em torno de 120 cestas por semana.
Vale destacar que este levantamento começou a ser realizado poucos meses após o arrefecimento da pandemia e que, quando perguntadas, a maioria das famílias entrevistadas (66,3%) disseram que a pandemia mudou a importância dos mercados locais. Para 85% delas, os mercados locais ganharam importância e apenas 15% os avaliaram como menos importantes.
Outra forma de comercialização direta são as trocas, realizadas por 25% das famílias que participaram do levantamento. Baseadas nos princípios da economia solidária, e tendo a produção familiar como principal moeda de troca, esta forma de comercialização é adotada especialmente por agricultoras/es do Equador, sendo praticada por 13 das 16 famílias entrevistadas no país. Quem realizou o levantamento no Equador foi o Movimiento de Economía Social y Solidária del Ecuador (MESSE).
Rosa Murillo, que além de dinamizadora do MESSE é agricultora agroecologista, conta que os trueques são uma tradição ancestral que se realiza entre comunidades, organizações e famílias. “É uma prática de reciprocidade onde o valor do dinheiro não existe. O produto perde seu valor monetário porque o que se prioriza é a necessidade. Por exemplo, troco um coelho por queijo, mandioca, fruta ou peixe. Monetariamente podemos dizer que o coelho custa mais caro, mas não é assim, na troca a necessidade da pessoa ou família é o que predomina e essa é a chave”.
Este tipo de escambo acontece tanto nas próprias fincas familiares, entre vizinhos e amigos, quanto em feiras, que podem ser semanais ou especiais. Estas últimas acontecem com menos regularidade e mobilizam pessoas de diferentes regiões que se organizam coletivamente para vir da serra para a costa e vice-versa. Segundo Rosa, as feiras especiais de troca mobilizam em média 300 famílias. Em geral, cada uma delas troca um volume aproximado de 40kg de alimentos frescos e processados.
Rosa conta ainda que apesar de representar uma cultura ancestral, os trueques têm sido invisibilizados. Um dos propósitos do MESSE é difundi-lo a fim de promover a diversificação da dieta alimentar das famílias. Além disso, “é uma atividade que fomenta as relações entre comunidades e diferentes povos, como indígenas, afrodescendentes e montuvios, e é uma forma de resistir a todo o capitalismo que se faz cada vez mais presente”.
Apesar de ser mais difundida no Equador, agricultores/as do Paraguai, México, El Salvador, Santa Catarina e Bahia também são adeptos desta prática.
Outros canais de comercialização identificados no levantamento foram os restaurantes, que figuram como clientes de apenas 8% das famílias entrevistadas e os supermercados, que representam uma parcela ainda menor, com menos de 6% das famílias comercializando para este tipo de empreendimento. Enquanto atravessadoras, as lojas especializadas são uma opção de venda para 15% das famílias participantes do projeto. Veja outros canais de comercialização no gráfico abaixo:
Considerando que 87 famílias agricultoras, ou seja 77% das entrevistadas, lidam diretamente com consumidores, buscou-se compreender também como eles/as avaliam esta relação, pedindo para que apontassem o principal benefício percebido. A confiança foi a resposta de 51 famílias, conforme o gráfico abaixo:
A resposta de um agricultor salvadorenho ilustra essa percepção, ao dizer que o contato direto “ajuda muito porque o consumidor sabe como os cultivos estão sendo manejados e sabe o que está consumindo”. Também nota-se que a comunicação direta com quem consome tem potencial de influenciar nas decisões de manejo e produção. Um dos agricultores orgânicos do Paraguai responde que quando há uma proximidade com os consumidores “há maior pressão sobre o produtor e também exige que sejam produtos de boa qualidade. Eles são direcionados para o que produzir de acordo com os pedidos”. Relato semelhante ao de um agricultor de Santa Catarina ligado à Rede Ecovida de Agroecologia: “Influencia a tomada de decisão do que vamos semear. Plantamos coisas que têm maior aceitação”.
Para além dos indicadores relacionados às comercialização, o projeto desenvolve outros nove indicadores divididos em três eixos – econômico, social e ambiental – que foram identificados em um processo participativo com o Comitê Gestor do projeto, formado pelo Cepagro, CETAP e Movimento Mecenas da Vida (Brasil), APRO (Paraguai), MESSE (Equador), Fundesyram (El Salvador), Centro Campesino para el Desarrollo Sustentable A. C. e Rede Tijtoca Nemiliztli (México). A definição dos indicadores também usou como base os planos de manejo de Sistemas Participativos de Garantia (SPG) existentes nos países membros, bem como a viabilidade de coleta de dados junto aos/às agricultores/as participantes e no interesse das organizações em temas particulares.
O projeto Agroecologia na América Latina: construindo caminhos conta com o apoio da Fundação Interamericana (IAF) e é desenvolvido em parceria com a Dra. Hannah Wittman, professora e pesquisadora do Centro para Sistemas Alimentares Sustentáveis da University of British Columbia (UBC), do Canadá.
* Fonte: Cepagro
Ao apagar das luzes de 2022, e às vésperas de sua saída do poder pelo anseio popular, o governo de extrema direita brasileiro selou a sua trajetória de uma escalada sem precedentes de permissividade com a comercialização e o uso de agrotóxicos. No dia 19/12, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado Federal aprovou um relatório favorável ao Projeto de Lei (PL) 1459/2022, conhecido como “Pacote do Veneno”. A aprovação ocorreu paralela a um pedido de urgência pelos senadores para votação da pauta no plenário.
Como resultado deste contexto, o projeto foi encaminhado ao Congresso e poderá tornar-se lei a partir do próximo ano. Caso isso ocorra, o uso indiscriminado de agrotóxicos potencialmente perigosos, muitos deles inclusive já banidos por países que mantém relações comerciais com o Brasil, principalmente na União Europeia, ganha um considerável reforço que se soma à liberação de 1.900 novos produtos desta natureza em apenas 4 anos de governo – o que representa 25% de todos os registros nacionais de agrotóxicos em 20 anos.
Para compreender o grau de ameaça à saúde e ao meio ambiente protagonizado por este Projeto de Lei, uma de suas principais atribuições é dar exclusividade ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento na aprovação de novos agrotóxicos, tornando apenas consultivas as manifestações do Ministério do Meio Ambiente e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Além disso, abre espaço para o registro de ingredientes ativos que comprovadamente causam danos graves à saúde (má formação, câncer e mutações), oculta a nocividade dessas substâncias alterando o termo “agrotóxico” para “pesticida” e confere registro temporário aos venenos agrícolas que não forem analisados no prazo estabelecido pela Lei.
A possível aprovação do PL resultará em consequências não somente desastrosas para as esferas ambientais e de saúde pública, estendendo-se também ao campo das relações internacionais. Uma carta assinada por 21 parlamentares alemães foi enviada aos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), e da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária, senador Acir Gurgacz (PDT), com manifestação contrária à aprovação do PL 1459/2022. Em suas considerações, os alemães reiteram a importância das relações comerciais entre os 2 países, abaladas pelo receio de adquirirem alimentos produzidos em solo brasileiro e contaminados com agrotóxicos proibidos na Europa.
Embora resulte em preocupações relevantes pelo poder público europeu, a questão por sua vez revela o oportunismo das corporações do velho continente. De acordo com Yannick Jadot, deputado europeu e candidato à presidência na França, o projeto beneficia as maiores empresas, como a BASF e a Bayer Monsanto, que poderão exportar pesticidas proibidos na União Europeia com mais facilidade. A ideia é corroborada por Kenzo Jucá, especialista em Direito Ambiental e assessor legislativo do Instituto Socioambiental (ISA), que afirma que a indústria do veneno vê no Brasil uma oportunidade para comercializar os produtos que não conseguem mais vender em outras partes do mundo.
De acordo com Marquito – Marcos José de Abreu (PSOL), deputado estadual eleito por Santa Catarina e coordenador adjunto do Fórum Catarinense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos (FCCIAT), a falta de isonomia entre as legislações nacionais que avaliam os riscos dos agrotóxicos à saúde pública é uma das responsáveis por transformar o Brasil em uma espécie de “lixeira química” do mundo. “É inaceitável do ponto de vista científico que as análises sejam diferentes, já que os riscos recaem sobre os mesmos seres”, reflete o deputado. Segundo ele, é necessário enfrentar o problema com uma legislação moderna, que incorpore os insumos de base ecológica, proíba os agrotóxicos já banidos por outros países e use critérios globais para avaliação de riscos.
O papel das organizações civis
As organizações Cepagro, Vianei, CETAP e ASPTA, por meio do projeto Consumidores e Agricultores em Rede (apoiado por Misereor), promovem ações de incidência política de enfrentamento aos agrotóxicos em suas quatro regiões de atuação nos três estados do Sul do Brasil. A participação do Cepagro no FCCIAT permite pautar a Agroecologia como meio de transformação social no campo e na cidade, democratizando a produção e o consumo de alimentos livres de venenos. Este Fórum é um espaço permanente, plural, aberto e diversificado de debate para a formulação de propostas, discussão e fiscalização de políticas públicas, com questões relacionadas aos impactos negativos dos agrotóxicos na saúde do trabalhador, do consumidor, da população e do ambiente.
A missão é estratégica por contribuir permanentemente na discussão e construção de políticas públicas, não somente na área temática do combate aos impactos dos agrotóxicos, como na promoção da Agroecologia reforçando Segurança Alimentar e Nutricional. Essa atuação teve impacto junto às seguintes pautas:
– Medida Provisória 226/2019,que dispõe sobre a tributação de agrotóxicos de acordo com sua classificação toxicológica.
– Apoio/fortalecimento da Lei Nº 18.200, de 13 de setembro de 2021 que Institui a Política Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica (PEAPO) e a garantia de orçamento incluindo-a na Lei das Diretrizes Orçamentarias de SC.
– Apoio/fortalecimento da Lei nº 15.595, de 14 de outubro de 2011, que dispõe sobre o Sistema Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional, que consiste na realização do direito de todas as pessoas terem acesso digno, regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.
* Por Fernando Angeoletto, jornalista do projeto Consumidores e Agricultores em Rede, e Gisa Garcia, diretora-presidenta do Cepagro
Foto: kiankhoon/DepositPhotos | Agência Câmara de Notícias
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Fontes consultadas:
https://www.greenpeace.org/brasil/blog/pacote-do-veneno-pode-ser-votado-a-qualquer-momento